Depois de muitas voltas e reviravoltas, eis que chega o tão aguardado dia 9 de Novembro, data do polémico referendo onde se perguntará aos catalães se querem ou não que a Catalunha se torne um estado independente, quebrando os laços que a unem a Espanha desde 1479. O que vai acontecer amanhã na região é ainda, em larga medida, uma incógnita, tantos foram os avanços e recuos do governo catalão- a Generalitat- sobre o tema. Mas uma coisa é certa: haverá uma Catalunha antes e depois do 9 de Novembro.
Antecedentes
As aspirações de independência do povo catalão são antiquíssimas, arrastando-se ao longo de séculos. Apesar de unidos a Espanha desde 1479- aquando do casamento do rei de Aragão, Fernando, com a rainha Isabel de Castela, que uniu as duas monarquias, dando origem ao Reino de Espanha-,os catalães conservaram uma língua e uma cultura próprias e muito vincadas, que os distinguem do resto de Espanha e cuja área de influência se espalha pelas vizinhas Comunidade Valenciana, Ilhas Baleares e até por uma parte de França- os chamados "Pays Catalans"-, ou seja, por todo o território do antigo Reino de Aragão.
Os reis católicos- Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela- cujo casamento deu origem ao Reino de Espanha
Ao longo dos séculos, não faltaram tentativas de os catalães proclamarem a sua independência. Uma das mais destacadas é a chamada "Sublevação da Catalunha", conhecida localmente como "Guerra dels Segadors" ("Guerra dos Ceifeiros"), que ocorreu em 1640, numa altura em que o nosso país estava também anexado a Espanha, e no mesmo ano em que os portugueses se revoltaram também contra o domínio espanhol. Resultado: o rei espanhol Felipe IV (III de Portugal), sem tropas para acudir às duas revoltas, optou por usar as suas forças para suprimir a revolta catalã em vez da portuguesa, e Portugal conseguiu assim restaurar a sua independência sob o reinado de D. João IV.
O quadro "Corpus de Sang", de Antoni Estruch i Bros, representa a "Guerra dels Segadors"
Outro dos grandes episódios de sublevação da Catalunha ocorreu em 1713, quando os catalães, no final da Guerra da Sucessão de Espanha, decidem não aceitar a paz e prosseguir a guerra sozinhos contra os exércitos dos reinos de Espanha e França. Tudo culminou num sangrento Cerco de Barcelona, que durou mais de um ano, fez dezenas de milhares de mortos, e acabou por levar à derrota dos catalães. Este episódio é hoje lembrado todos os anos no dia 11 de Setembro, dia que marcou o fim do cerco em 1714 e é hoje o Dia Nacional da Catalunha (a "Diada").
Manifestação independentista na "Diada" em que se pode ver a bandeira "estrelada", símbolo do independentismo catalão
Os catalães não conseguiram a independência, e muitas vezes viram a sua cultura secular ser secundarizada pelo centralismo do poder espanhol em Madrid, que em muitos períodos da história espanhola implicou a imposição da cultura castelhana sobre as restantes culturas do reino- destacando-se naturalmente os catalães, os bascos e os galegos. Destaca-se o período da ditadura de Franco (1939-1975), em que praticamente toda a autonomia da Catalunha foi suprimida, os catalanistas fortemente perseguidos e as manifestações da cultura catalã severamente controladas.
Desde a democratização de Espanha depois da morte de Franco, com a aprovação da Constituição de 1978, a Catalunha tem, à semelhança das restantes 16 regiões de Espanha, autonomia governativa em amplos sectores, destacando-se a gestão dos sistemas de educação e saúde, que são geridos em Barcelona sob o comando da Generalitat (governo) e do Parlament (parlamento) da Catalunha. O catalão é, hoje, idioma co-oficial da Catalunha, da Comunidade Valenciana e das Ilhas Baleares.
O Palau de la Generalitat, em Barcelona, é a sede do Governo da Catalunha
O caminho para o referendo
A reposição dos direitos, liberdades e autonomias dos catalães a partir de 1978 serenou, durante muitos anos, os ânimos independentistas. No entanto, nunca agradou aos catalães que tenha sido imposto o mesmo grau de autonomia a todas as regiões espanholas- por exemplo, a Generalitat e o Parlament da Catalunha têm as mesmas competências que o Gobierno e o Parlamento de La Rioja ou da Cantabria (regiões que têm praticamente a mesma cultura de toda a Castela e nunca tiveram ambições autonomistas ou independentistas)-, num processo que ficou conhecido como "café para todos" e que ainda hoje é muito questionado em Espanha.
A Constituição Espanhola de 1978 marcou o início da "Espanha das Autonomias"
Mas o que mais desagrada aos catalães é o regime de distribuição de verbas pelas diferentes regiões de Espanha, operado pelo Governo Central em Madrid. Apesar do elevado grau de autonomia das suas regiões, Espanha não é, ao contrário da Alemanha, da Suíça, da Bélgica ou dos Estados Unidos, uma Federação de Estados. O que é que isto implica? Que, enquanto numa Federação de Estados, cada Estado recolhe os impostos no seu território e depois paga uma contribuição ao Estado Central para sustentar as despesas comuns (defesa, diplomacia, etc.); no caso Espanhol, pelo contrário, é o Estado Central que recolhe os impostos em todas as regiões e depois os distribui pelas regiões- ou seja, é a partir de Madrid que se define o orçamento das regiões espanholas.
Ora, a grande questão neste caso é que Espanha tem feito uma grande aposta na convergência económica e social de todas as suas regiões, pelo que tende a favorecer as regiões mais pobres (como a Estremadura, a Andaluzia ou Castela-La Mancha) aquando da distribuição dos fundos que vão constituir o orçamento de cada autonomia. A Catalunha, ao ser uma das regiões mais ricas e industrializadas de Espanha, é um dos maiores contribuintes para o orçamento espanhol (paga bem mais em impostos ao Estado do que recebe no orçamento de cada ano) e sente-se prejudicada pelo que entende ser um desvio de fundos que pertencem aos catalães e estão a ser usados noutras partes de Espanha.
Tudo isto se passou num contexto de fortalecimento político dos partidos nacionalistas catalães. Com efeito, o partido nacionalista Convergència i Unió (CiU, centro-direita) voltou em 2010 ao poder na Catalunha, derrotando o Partido Socialista da Catalunha (PSC), apoiante da integração em Espanha e que governava a Generalitat desde 2003.
A situação extremou-se ainda mais com o falhanço das negociações entre a Generalitat, presidida agora por Artur Mas, e o também novo governo espanhol, presidido por Mariano Rajoy (PP, direita conservadora), sobre o novo pacto fiscal que iria mudar a distribuição dos impostos cobrados na Catalunha. A falta de flexibilidade do governo central nestas negociações irritou sobremaneira os catalães que saíram às ruas em massa a 11 de Setembro de 2012, Dia Nacional da Catalunha, numa das maiores manifestações jamais vistas em território catalão, sob o lema "Catalunya, nou estat d'Europa" ("Catalunha, novo estado da Europa).
Manifestação da Diada de 2012- à direita, um "Castell" (torre humana") tipicamente catalão
Pressionado pelos acontecimentos,
Artur Mas decidiu convocar eleições legislativas antecipadas para 26 de Novembro de 2012, anunciando também a convocatória de um referendo à independência da Catalunha, naquilo que foi interpretado um "golpe de rins" de Mas com o objectivo de aumentar a sua votação. No entanto, o tiro saiu pela culatra-a CiU, que em 2010 tinha ficado próxima da maioria absoluta, perdeu 12 deputados-, numas eleições que ficaram marcadas pelo grande salto da Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), que ganhou 11 deputados e mais do que duplicou a sua representação no Parlament. Os restantes resultados espelham o extremar de posições políticas dos catalães: o PSC caiu a pique e o PP (o mais forte adversário dos independentistas) teve o melhor resultado da sua história.
Na ausência de uma maioria clara, a única solução de Artur Mas foi aliar-se aos outros partidos pró-independência. Formou-se assim o governo mais contranatura da história da Catalunha, numa aliança entre a CiU de centro-direita e a ERC de extrema-esquerda, dois partidos cujas posições não concordam em quase nada excepto na defesa da independência da Catalunha.
Artur Mas (à esquerda), líder da CiU; e Oriol Jonqueras (à direita), líder da ERC; são os dois grandes protagonistas do panorama político actual na Catalunha
O bloqueio constitucional e a incerteza
Apesar da oposição frontal do governo de Madrid- que sempre disse que não reconheceria o referendo e tudo faria para impedir a sua realização, argumentando que este iria contra a Constituição-, o governo catalão foi avançando com todos os trâmites para realizar o referendo, nomeadamente a aprovação de uma lei eleitoral de consultas.
Todos os diálogos entre Mariano Rajoy (à esquerda) e Artur Mas (à direita) se revelaram infrutíferos devido à inflexibilidade de ambas as partes.
A 12 de Dezembro de 2013, a Generalitat anunciou a convocatória de um referendo para o dia 9 de Novembro de 2014, com duas perguntas:
"Quer que a Catalunha seja um Estado?"
"Em caso afirmativo, quer que este estado seja independente?"
Boletim de voto do referendo de 09.11.2014
A partir daqui, iniciou-se uma enorme e violenta batalha verbal e legal entre o Governo de Espanha e a Generalitat da Catalunha. O executivo liderado por Rajoy recorreu da convocatória para o Tribunal Constitucional, que em Março deste ano acabou por declarar o referendo inconstitucional, o que teoricamente impediria a sua realização. No entanto, o governo catalão prosseguiu com o processo. Em Abril, o Parlamento espanhol rejeitou o pedido da Catalunha para a realização de um referendo à independência.
Em Setembro de 2014, Artur Mas voltou a assinar um decreto de convocatória de referendo, desta vez apoiado num novo marco legal. No entanto, o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se pela inconstitucionalidade da votação.
Artur Mas assinando o decreto de convocatória do referendo de 9 de Novembro
Face a isto, Artur Mas decidiu, em vez do referendo formal, avançar com um "processo de participação cívica" que permitisse à população catalã pronunciar-se, apesar de não haver qualquer carácter vinculativo nos resultados. Mais uma vez, o processo foi bloqueado pelo Tribunal Constitucional. Ainda assim, o governo catalão decidiu avançar com a consulta, apoiado pelo menos pelas câmaras municipais governadas por partidos pró-independência.
A confusão instalou-se e, a poucas horas da realização da consulta, ainda não havia certezas de como esta se ia realizar. No entanto, o que decidirá o impacto deste referendo, mais do que o resultado (que invariavelmente dará a vitória ao "sim", porque a maioria dos que se opõem à independência não reconhece o referendo e recusa-se a participar nesta votação que vê como uma farsa), é o número de eleitores que se vai deslocar às mesas de voto.