segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Notícias breves

Eis algumas notícias que têm marcado a actualidade no início desta semana:

Confrontos em Hong Kong: os manifestantes pró-democracia não desarmam e mantêm, há largas semanas, os acampamentos e os protestos no centro financeiro e político desta Região Administrativa Especial chinesa. Nos últimos dias, a polícia aumentou a violência empregue contra os manifestantes com o objectivo de os desalojar e acabar de vez com o processo. Aparentemente, o resultado foi o contrário: não só os manifestantes têm cada vez mais apoio da população de Hong Kong, como as imagens da violência se espalharam rapidamente por todo o Mundo.


Cargas policiais deste fim-de-semana em Hong Kong (imagens: Agência Reuters)


Eleições no Uruguai: Depois de nenhum candidato ter conseguido os 50% dos votos necessários para ser eleito logo na primeira volta a 26 de Outubro, os uruguaios voltaram ontem, 30 de Novembro, às urnas, para escolher um dos dois candidatos mais votados- Tabaré Vásquez ou Luis Lacalle Pou- para ocupar o cargo de Presidente da República. Segundo as sondagens à boca das urnas, a vitória terá sorrido ao candidato de esquerda, Vásquez, com cerca de 53% dos votos. O novo presidente é do mesmo partido do seu antecessor, José Mujica- o "Frente Amplio"- e já ocupou o cargo entre 2005 e 2010.

 Ver também o post:  Eleições no Brasil, Ucrânia, Tunísia e Uruguai

 Tabaré Vásquez, da coligação Frente Amplio, será o próximo Presidente do Uruguai


Eleições na Moldávia: Um dos mais importantes actos eleitorais do ano realizou-se num dos mais pequenos países da Europa. Com uma sociedade profundamente dividida entre os pró-ocidentais e os pró-russos, a Moldávia foi às urnas e, de acordo com os resultados já apurados, apesar de o partido vencedor ter sido o Partido Socialista, pró-russo, estima-se que as forças pró-União Europeia, no seu conjunto, consigam formar governo. A Moldávia assinou recentemente um acordo de associação com a União Europeia, e os pró-europeus pretendem a integração do país (cuja maioria do território pertenceu à Roménia até à 2ª Guerra Mundial) na UE; no entanto, os pró-russos defendem uma maior reaproximação a Moscovo (a Moldávia pertenceu à União Soviética entre o final da 2ª Guerra Mundial e os anos 90) e o corte dos laços com o Ocidente. A situação é potencialmente explosiva, havendo o perigo de descambar num conflito idêntico ao ocorrido na vizinha Ucrânia.

 A escolha entre Rússia e Europa dominou as Eleições Legislativas na Moldávia, como se pode ver pelos cartazes espalhados pelas ruas de Chisinau. (imagem Deutsche Welle)


União Europeia: Donald Tusk, até há pouco tempo Primeiro-Ministro da Polónia, tomou posse como Presidente do Conselho Europeu para um mandato de 3 anos, sucedendo ao belga Herman Von Rompuy. Ficam assim empossados todos os novos cargos da União Europeia que reflectem a realidade política saída das Eleições Europeias de Maio último: o ex-Primeiro-Ministro do Luxemburgo, Jean-Claude Juncker, sucedeu a Durão Barroso como Presidente da Comissão Europeia; Donald Tusk ocupa agora a Presidência do Conselho Europeu; e Martin Schulz continua como Presidente do Parlamento Europeu. A escolha de um liberal polaco para ser a segunda figura mais importante da União reflecte o novo período, mais conturbado, de relações com a Rússia e o seu bloco económico, uma vez que a Polónia, vizinha dos russos e já invadida por estes várias vezes ao longo da história, é um dos países que mais se tem oposto à política expansionista de Vladimir Putin.

 Da esquerda para a direita: Donald Tusk, Herman Van Rompuy, Durão Barroso e Jean-Claude Juncker.



segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Espanha e Catalunha depois do referendo de 9 de Novembro

As reacções à realização do referendo de 9 de Novembro sobre a independência da Catalunha face a Espanha foram, naturalmente, díspares. Artur Mas, o Presidente da Generalitat, sente-se reforçado; os partidos independentistas de esquerda clamam pela declaração unilateral de independência; Mariano Rajoy, Presidente do Governo de Espanha fala numa farsa e numa derrota para o independentismo; já os socialistas do PSC e do PSOE criticam as duas partes.

Os resultados

Neste referendo (denominado "processo participativo sobre o futuro político da Catalunha" depois dos chumbos do Tribunal Constitucional espanhol) o factor mais importante para ambos os lados não eram propriamente as percentagens do "sim" ou do "não", mas antes o número de votantes. Isto acontece porque, uma vez que o referendo não tem qualquer carácter oficial nem vinculativo, já se esperava que a esmagadora maioria dos catalães não participasse no que considera ser uma "farsa".

No dia 9, foram registados 2 305 290 votos neste referendo, o que corresponderia a 37,02% dos eleitores maiores de 16 anos recenseados na Catalunha. No entanto, tal não significa que tenha sido esta a afluência real às urnas porque, uma vez que o referendo foi realizado à revelia do Tribunal Constitucional e, por isso, sem cadernos eleitorais que reflectissem um recenseamento válido, era possível que a mesma pessoa votasse mais do que uma vez em mesas de voto diferentes, e que mesmo pessoas não recenseadas, como os estrangeiros, pudessem votar.

De entre os votantes, 80,76% votou no "duplo sim"- ou seja, disse querer que a Catalunha fosse um Estado independente-, enquanto 10,07% votou "sim-não"- ou seja, optou por uma maior autonomia para a Catalunha mas sem independência. Apenas 4,54% dos votantes escolheu o "duplo não".

Resultados do "processo participativo" de 9 de Novembro de 2014 (infografia El País)

As reacções

Artur Mas sente-se reforçado por ter conseguido realizar o referendo, contrariando todas as manobras do governo espanhol e dos tribunais para tentar impedi-lo. Mas disse no dia da votação que os catalães "ganharam o direito a um referendo definitivo", classificando a consulta como "um passo de gigante" que constitui um "dia histórico" para a Catalunha. O Presidente da Generalitat da Catalunha deixou também um aviso ao poder judicial espanhol, já prevendo que a Fiscalía General del Estado (o equivalente à Procuradoria Geral da República em Portugal) formalize um processo judicial contra ele, dizendo em tom de desafio "se a Fiscalía quer conhecer o responsável, sou eu".

Artur Mas lançou esta semana uma ronda de contactos com todos os partidos catalães, excepto os dois mais críticos da independência (PP- Partido Popular e C's- Ciutadáns), e apelou ainda a Mariano Rajoy, a quem enviou uma carta, e ao Governo de Espanha para que inicie um diálogo que leve a um "referendo definitivo", dizendo que, caso tal não ocorra, o próximo passo que dará será convocar umas eleições plebiscitárias- ou seja, umas eleições legislativas normais, em que se elegem os deputados do Parlament, mas cujo programa dos partidos independentistas teria apenas um ponto- a declaração unilateral da independência da Catalunha, que seria votada e efectivada caso estes partidos conseguissem, no seu conjunto, a maioria dos assentos parlamentares. Seria uma eleição "plebiscitária" porque seria, na prática, idêntica a um plebiscito ou referendo: quem votasse nos partidos independentistas estaria a votar favoravelmente à declaração de independência.

O Presidente da Generalitat pretende também que, caso se realizem essas eleições, os partidos independentistas- Convergència i Unió (CiU), de centro-direita e liderada por ele próprio; Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), de extrema-esquerda; Candidatura d'Unitat Popular (CUP), também de extrema-esquerda; e Iniciativa per Catalunya Verds-Esquerra Unida i Alternativa (ICV-EUiA), ecologistas de esquerda- se apresentassem juntos, numa única lista.

A Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), liderada por Oriol Junqueras, defende a realização de eleições antecipadas "o mais depressa possível" para "declarar a independência" sem mais demoras. No entanto, a posição da ERC difere da da CiU quanto ao carácter das eleições: defendem umas "eleições constituintes", que sirvam para eleger um Governo e uma maioria parlamentar amplos, que comecem a "construir o novo país"- ou seja, que declarem desde logo a independência e elaborem uma Constituição.

Contudo, a ERC não partilha a ideia de uma lista conjunta com a CiU, que também já foi rejeitada pela CUP e pela ICV-EUiA, defendendo antes que as alianças devem fazer-se depois das eleições, para criar um governo o mais amplo possível.

Mariano Rajoy (PP), o Presidente do Governo de Espanha, manteve-se em silêncio sobre o referendo durante os dias seguintes à sua realização, o que foi visto com desagrado por alguns dos seus apoiantes. As suas primeiras palavras sobre o processo foram ditas numa conferência de imprensa convocada para o efeito na passada quarta-feira, 12 de Novembro, 3 dias após o referendo catalão.

Rajoy referiu-se ao processo participativo como "um profundo fracasso", "um simulacro eleitoral sem censo e controlado pelos que o pretendiam ganhar", que demonstrou "a debilidade" do projecto independentista, e com uma "gravidade especial" por ir contra as resoluções do Tribunal Constitucional. O governante disse que "nunca se negou a negociar" com Artur Mas e a Generalitat, mas rejeitou a intenção do presidente catalão de negociar um referendo definitivo, porque "o que era ilegal há um ano continua a sê-lo hoje". Rajoy foi taxativo com Mas: se quer evoluir com o processo, que o faça pelas vias legais- propondo uma revisão da Constituição de Espanha que preveja o direito à autodeterminação. Contudo, essa revisão constitucional teria de ser aprovada pelas Cortes Generales (Parlamento de Espanha), e Rajoy deixou bem claro que o seu partido, o PP, que detém a maioria absoluta parlamentar, se oporá a qualquer alteração à Constituição que vá contra a unidade de Espanha. Ora, sem o apoio do PP, neste momento é impossível rever a Constituição. Hoje, dia 17 de Novembro, Rajoy enviou uma carta a Artur Mas sobre o processo participativo, vincando os argumentos do governo de Madrid.

Já Pedro Sánchez, o líder do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), esteve em Barcelona logo no dia seguinte ao referendo, onde se reuniu com a delegação catalã do partido- o Partit dels Socialistes de Catalunya (PSC)- e desafiou Rajoy a "reformar a Constituição". Os socialistas têm defendido um projecto de federalismo, que aproxime o modelo territorial espanhol dos que se praticam, por exemplo, na Alemanha ou nos Estados Unidos. O PSC considerou o 9 de Novembro "um êxito de mobilização, tendo em conta que se tratava de um processo participativo", e insistiu que Rajoy deve dar "uma solução política" ao problema, embora defenda que essa solução não deve passar pela independência.

Na passada sexta-feira, o Fiscal Geral do Estado (homólogo do Procurador Geral da República em Portugal), Eduardo Torres-Dulce, reuniu com a Fiscalía General de Cataluña. Os procuradores catalães opuseram-se à intenção da Fiscalía General de avançar com uma queixa contra Artur Mas e o seu governo pelo incumprimento das normas constitucionais que ocorreu com a realização do referendo. No entanto, mesmo sem o apoio dos procuradores catalães, Torres-Dulce pretende avançar com a queixa, tendo já convocado uma reunião com os principais procuradores de Espanha para continuar com o processo, que poderia levar à inabilitação (proibição de exercer cargos públicos) a Artur Mas e a outros dirigentes políticos catalães por um período que pode chegar a 2 anos.


Este processo aprofundou, em suma, ainda mais a fractura entre as vontades dos poderes de Espanha e da Catalunha. Como se vê pelas reacções extremadas dos vários intervenientes políticos, esta questão está longe de estar encerrada, pelo que assistiremos seguramente a desenvolvimentos nos próximos tempos, que se prevêem conturbados no país vizinho.

sábado, 8 de novembro de 2014

9 de Novembro: dia de referendo na Catalunha

Depois de muitas voltas e reviravoltas, eis que chega o tão aguardado dia 9 de Novembro, data do polémico referendo onde se perguntará aos catalães se querem ou não que a Catalunha se torne um estado independente, quebrando os laços que a unem a Espanha desde 1479. O que vai acontecer amanhã na região é ainda, em larga medida, uma incógnita, tantos foram os avanços e recuos do governo catalão- a Generalitat- sobre o tema. Mas uma coisa é certa: haverá uma Catalunha antes e depois do 9 de Novembro.
Antecedentes

As aspirações de independência do povo catalão são antiquíssimas, arrastando-se ao longo de séculos. Apesar de unidos a Espanha desde 1479- aquando do casamento do rei de Aragão, Fernando, com a rainha Isabel de Castela, que uniu as duas monarquias, dando origem ao Reino de Espanha-,os catalães conservaram uma língua e uma cultura próprias e muito vincadas, que os distinguem do resto de Espanha e cuja área de influência se espalha pelas vizinhas Comunidade Valenciana, Ilhas Baleares e até por uma parte de França- os chamados "Pays Catalans"-, ou seja, por todo o território do antigo Reino de Aragão.

Os reis católicos- Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela- cujo casamento deu origem ao Reino de Espanha
 
Ao longo dos séculos, não faltaram tentativas de os catalães proclamarem a sua independência. Uma das mais destacadas é a chamada "Sublevação da Catalunha", conhecida localmente como "Guerra dels Segadors" ("Guerra dos Ceifeiros"), que ocorreu em 1640, numa altura em que o nosso país estava também anexado a Espanha, e no mesmo ano em que os portugueses se revoltaram também contra o domínio espanhol. Resultado: o rei espanhol Felipe IV (III de Portugal), sem tropas para acudir às duas revoltas, optou por usar as suas forças para suprimir a revolta catalã em vez da portuguesa, e Portugal conseguiu assim restaurar a sua independência sob o reinado de D. João IV.

O quadro "Corpus de Sang", de Antoni Estruch i Bros, representa a "Guerra dels Segadors" 
Outro dos grandes episódios de sublevação da Catalunha ocorreu em 1713, quando os catalães, no final da Guerra da Sucessão de Espanha, decidem não aceitar a paz e prosseguir a guerra sozinhos contra os exércitos dos reinos de Espanha e França. Tudo culminou num sangrento Cerco de Barcelona, que durou mais de um ano, fez dezenas de milhares de mortos, e acabou por levar à derrota dos catalães. Este episódio é hoje lembrado todos os anos no dia 11 de Setembro, dia que marcou o fim do cerco em 1714 e é hoje o Dia Nacional da Catalunha (a "Diada").

Manifestação independentista na "Diada" em que se pode ver a bandeira "estrelada", símbolo do independentismo catalão
 
Os catalães não conseguiram a independência, e muitas vezes viram a sua cultura secular ser secundarizada pelo centralismo do poder espanhol em Madrid, que em muitos períodos da história espanhola implicou a imposição da cultura castelhana sobre as restantes culturas do reino- destacando-se naturalmente os catalães, os bascos e os galegos. Destaca-se o período da ditadura de Franco (1939-1975), em que praticamente toda a autonomia da Catalunha foi suprimida, os catalanistas fortemente perseguidos e as manifestações da cultura catalã severamente controladas.
Desde a democratização de Espanha depois da morte de Franco, com a aprovação da Constituição de 1978, a Catalunha tem, à semelhança das restantes 16 regiões de Espanha, autonomia governativa em amplos sectores, destacando-se a gestão dos sistemas de educação e saúde, que são geridos em Barcelona sob o comando da Generalitat (governo) e do Parlament (parlamento) da Catalunha. O catalão é, hoje, idioma co-oficial da Catalunha, da Comunidade Valenciana e das Ilhas Baleares.

O Palau de la Generalitat, em Barcelona, é a sede do Governo da Catalunha 
O caminho para o referendo
A reposição dos direitos, liberdades e autonomias dos catalães a partir de 1978 serenou, durante muitos anos, os ânimos independentistas. No entanto, nunca agradou aos catalães que tenha sido imposto o mesmo grau de autonomia a todas as regiões espanholas- por exemplo, a Generalitat e o Parlament da Catalunha têm as mesmas competências que o Gobierno e o Parlamento de La Rioja ou da Cantabria (regiões que têm praticamente a mesma cultura de toda a Castela e nunca tiveram ambições autonomistas ou independentistas)-, num processo que ficou conhecido como "café para todos" e que ainda hoje é muito questionado em Espanha.

A Constituição Espanhola de 1978 marcou o início da "Espanha das Autonomias"
Mas o que mais desagrada aos catalães é o regime de distribuição de verbas pelas diferentes regiões de Espanha, operado pelo Governo Central em Madrid. Apesar do elevado grau de autonomia das suas regiões, Espanha não é, ao contrário da Alemanha, da Suíça, da Bélgica ou dos Estados Unidos, uma Federação de Estados. O que é que isto implica? Que, enquanto numa Federação de Estados, cada Estado recolhe os impostos no seu território e depois paga uma contribuição ao Estado Central para sustentar as despesas comuns (defesa, diplomacia, etc.); no caso Espanhol, pelo contrário, é o Estado Central que recolhe os impostos em todas as regiões e depois os distribui pelas regiões- ou seja, é a partir de Madrid que se define o orçamento das regiões espanholas.
Ora, a grande questão neste caso é que Espanha tem feito uma grande aposta na convergência económica e social de todas as suas regiões, pelo que tende a favorecer as regiões mais pobres (como a Estremadura, a Andaluzia ou Castela-La Mancha) aquando da distribuição dos fundos que vão constituir o orçamento de cada autonomia. A Catalunha, ao ser uma das regiões mais ricas e industrializadas de Espanha, é um dos maiores contribuintes para o orçamento espanhol (paga bem mais em impostos ao Estado do que recebe no orçamento de cada ano) e sente-se prejudicada pelo que entende ser um desvio de fundos que pertencem aos catalães e estão a ser usados noutras partes de Espanha.
O verniz estalou nos últimos anos com o agravamento da crise económica e das dívidas soberanas que afectou em cheio Espanha e muito particularmente a Catalunha. A Generalitat entrou em quebra financeira e teve que pedir um resgate ao governo central, cujas negociações foram muito tensas porque os governantes catalães entendem que não estão a pedir nenhum empréstimo, mas antes a reclamar dinheiro que é seu por direito e que lhe foi sendo retirado anos a fio.
Tudo isto se passou num contexto de fortalecimento político dos partidos nacionalistas catalães. Com efeito, o partido nacionalista Convergència i Unió (CiU, centro-direita) voltou em 2010 ao poder na Catalunha, derrotando o Partido Socialista da Catalunha (PSC), apoiante da integração em Espanha e que governava a Generalitat desde 2003.
A situação extremou-se ainda mais com o falhanço das negociações entre a Generalitat, presidida agora por Artur Mas, e o também novo governo espanhol, presidido por Mariano Rajoy (PP, direita conservadora), sobre o novo pacto fiscal que iria mudar a distribuição dos impostos cobrados na Catalunha. A falta de flexibilidade do governo central nestas negociações irritou sobremaneira os catalães que saíram às ruas em massa a 11 de Setembro de 2012, Dia Nacional da Catalunha, numa das maiores manifestações jamais vistas em território catalão, sob o lema "Catalunya, nou estat d'Europa" ("Catalunha, novo estado da Europa).

Manifestação da Diada de 2012- à direita, um "Castell" (torre humana") tipicamente catalão
Pressionado pelos acontecimentos, Artur Mas decidiu convocar eleições legislativas antecipadas para 26 de Novembro de 2012, anunciando também a convocatória de um referendo à independência da Catalunha, naquilo que foi interpretado um "golpe de rins" de Mas com o objectivo de aumentar a sua votação. No entanto, o tiro saiu pela culatra-a CiU, que em 2010 tinha ficado próxima da maioria absoluta, perdeu 12 deputados-, numas eleições que ficaram marcadas pelo grande salto da Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), que ganhou 11 deputados e mais do que duplicou a sua representação no Parlament. Os restantes resultados espelham o extremar de posições políticas dos catalães: o PSC caiu a pique e o PP (o mais forte adversário dos independentistas) teve o melhor resultado da sua história.
Na ausência de uma maioria clara, a única solução de Artur Mas foi aliar-se aos outros partidos pró-independência. Formou-se assim o governo mais contranatura da história da Catalunha, numa aliança entre a CiU de centro-direita e a ERC de extrema-esquerda, dois partidos cujas posições não concordam em quase nada excepto na defesa da independência da Catalunha.

Artur Mas (à esquerda), líder da CiU; e Oriol Jonqueras (à direita), líder da ERC; são os dois grandes protagonistas do panorama político actual na Catalunha

O bloqueio constitucional e a incerteza
Apesar da oposição frontal do governo de Madrid- que sempre disse que não reconheceria o referendo e tudo faria para impedir a sua realização, argumentando que este iria contra a Constituição-, o governo catalão foi avançando com todos os trâmites para realizar o referendo, nomeadamente a aprovação de uma lei eleitoral de consultas.

Todos os diálogos entre Mariano Rajoy (à esquerda) e Artur Mas (à direita) se revelaram infrutíferos devido à inflexibilidade de ambas as partes.

 A 12 de Dezembro de 2013, a Generalitat anunciou a convocatória de um referendo para o dia 9 de Novembro de 2014, com duas perguntas:
"Quer que a Catalunha seja um Estado?"
"Em caso afirmativo, quer que este estado seja independente?"

Boletim de voto do referendo de 09.11.2014
A partir daqui, iniciou-se uma enorme e violenta batalha verbal e legal entre o Governo de Espanha e a Generalitat da Catalunha. O executivo liderado por Rajoy recorreu da convocatória para o Tribunal Constitucional, que em Março deste ano acabou por declarar o referendo inconstitucional, o que teoricamente impediria a sua realização. No entanto, o governo catalão prosseguiu com o processo. Em Abril, o Parlamento espanhol rejeitou o pedido da Catalunha para a realização de um referendo à independência.
Em Setembro de 2014, Artur Mas voltou a assinar um decreto de convocatória de referendo, desta vez apoiado num novo marco legal. No entanto, o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se pela inconstitucionalidade da votação.

Artur Mas assinando o decreto de convocatória do referendo de 9 de Novembro

Face a isto, Artur Mas decidiu, em vez do referendo formal, avançar com um "processo de participação cívica" que permitisse à população catalã pronunciar-se, apesar de não haver qualquer carácter vinculativo nos resultados. Mais uma vez, o processo foi bloqueado pelo Tribunal Constitucional. Ainda assim, o governo catalão decidiu avançar com a consulta, apoiado pelo menos pelas câmaras municipais governadas por partidos pró-independência.
A confusão instalou-se e, a poucas horas da realização da consulta, ainda não havia certezas de como esta se ia realizar. No entanto, o que decidirá o impacto deste referendo, mais do que o resultado (que invariavelmente dará a vitória ao "sim", porque a maioria dos que se opõem à independência não reconhece o referendo e recusa-se a participar nesta votação que vê como uma farsa), é o número de eleitores que se vai deslocar às mesas de voto.



terça-feira, 28 de outubro de 2014

Eleições no Brasil, Ucrânia, Tunísia e Uruguai

O passado fim-de-semana ficou marcado por importantes eleições em vários países-chave para importantes regiões estratégicas do Mundo. No Brasil, Dilma Rousseff foi reeleita Presidente; na Ucrânia, os partidos pró-União Europeia tiveram uma importante vitória; na Tunísia, os islamitas perderam para o partido Nidaa Tounès; e no Uruguai vai ser necessária uma segunda volta para escolher o novo Presidente.

Vamos, então, por partes:

Eleições Presidenciais no Brasil

Dilma Rousseff (do PT, de esquerda) conseguiu ser reeleita "Presidenta", embora por uma curta margem. Foram, na verdade, as eleições mais renhidas desde que o Brasil voltou a ser uma democracia, no final dos anos 80. Os votos dos Estados do Nordeste- principalmente Pernambuco, Ceará, Bahia, Maranhão, Sergipe, Alagoas e Rio Grande do Norte, onde Dilma obteve esmagadoras percentagens à volta dos 70% dos votos- foram decisivos para esta vitória. Aécio Neves (do PSDB, de centro-direita) obteve as maiores votações nos estados mais ricos, a sul- São Paulo, Paraná e Santa Catarina-, mas estas vitórias não chegaram para vencer. Noutros estados importantes a eleição foi mais renhida, com Dilma a conseguir vencer no Rio de Janeiro com 55% dos votos, e em Minas Gerais (estado de origem dos dois candidatos) com 52%.  

A vitória de Dilma, mais ligada à esquerda e às camadas mais pobres da população, fez a Bolsa de São Paulo cair vertiginosamente e a moeda brasileira (o real) desvalorizar, uma vez que os empresários e os investidores preferiam Aécio Neves. Com Dilma, será de esperar uma maior aposta nos programas sociais e num mercado de trabalho regulado, com legislação mais favorável aos trabalhadores. O grande desafio do novo governo, que estará no poder até 2018 (completando o maior período de governação ininterrupta de sempre do PT, de 16 anos), será dar a volta à crise económica que o Brasil parece começar a atravessar devido à estagnação da sua economia. Será ainda com Dilma no poder que o Rio de Janeiro receberá os Jogos Olímpicos de 2016.
 

Eleições Legislativas na Ucrânia

Na Ucrânia, realizaram-se as primeiras eleições legislativas (para escolher o Parlamento e o Governo) desde a revolução e o início da guerra civil.  O chamado "Bloco Petro Poroshenko", de apoio ao Presidente da República eleito este ano, venceu as eleições com uma pequena vantagem sobre a Frente Popular do até agora Primeiro-Ministro provisório Arseni Yatseniuk. Ambos defendem uma aproximação à União Europeia, tal como o terceiro partido mais votado, o "Auto-Ajuda", formado por militares que combatem na guerra civil contra os pró-russos. Em quarto lugar ficou o Bloco da Oposição, formado por apoiantes do anterior Presidente Viktor Ianukovitch, pró-russo, que foi deposto durante a revolução de Fevereiro deste ano.

Resultados das eleições deste domingo (infografia da Euronews)

Como ninguém obteve mais que 50% dos votos necessários para haver uma maioria absoluta, já começaram as negociações para a formação de um novo governo, que se espera seja formado por uma aliança de partidos pró-União Europeia, que obtiveram, em conjunto, mais de 3/4 dos votos. Petro Poroshenko, ao comemorar a vitória, disse que o objectivo do novo governo será fazer todas as alterações legais necessárias à integração na União Europeia, sendo que apontou o objectivo de ver a Ucrânia entrar na União já em 2020.

O Governo Russo já aceitou os resultados eleitorais, embora os separatistas pró-russos não o tenham feito. Nas regiões que controlam (Donetsk e Luhansk, no leste do país), as milícias russófonas não permitiram a realização destas eleições, pretendendo realizar uma votação controlada por si no próximo dia 2 de Novembro que, naturalmente, não é reconhecida pelo Governo Ucraniano.

Eleições Legislativas na Tunísia

Na Tunísia realizaram-se as primeiras eleições legislativas desde a chamada "Revolução de Jasmim", em que vastas manifestações levaram à fuga do ditador Ben Ali, em 2011, inspirando protestos semelhantes por vários países que deram origem à chamada "Primavera Árabe". 

Mesa de voto em Tunes, capital da Tunísia
 
Após a revolução, foi eleita uma Assembleia Constituinte, com o objectivo de escrever a nova Constituição. Estas eleições tinham sido ganhas por um partido islamista moderado- o Ennahda. No entanto, este domingo, os islamistas foram derrotados por um partido laico- o Nidaa Tounès-, pelo que é expectável que a revolução tunisina (a mais bem-sucedida de todas as da Primavera Árabe) continue por um caminho mais moderado e próximo ao Ocidente, não havendo tentações, como tem havido noutros países, de implementar regimes dominados pela lei islâmica, o que poderia constituir um risco para a Europa, que está apenas a escassos quilómetros de distância da Tunísia e dos seus vizinhos.

Eleições no Uruguai:

Presidente cessante José Mujica chega de "Carocha" para votar nas eleições deste domingo

Após quatro anos de mandato do Presidente José Mujica, um agricultor conhecido como "o presidente mais pobre do Mundo" pela sua simplicidade ( doa a maior parte do seu salário, vive numa casa modesta, conduz um velhinho "Carocha" e recusa praticamente todas as regalias próprias de um chefe de estado), o Uruguai foi às urnas para eleger o seu sucessor.

No entanto, tudo ficou adiado para uma segunda volta a realizar em Novembro. Isto porque o candidato do partido de Mujica, Tabaré Vázquez, não conseguiu os 50% dos votos necessários para ser eleito à primeira. Em segundo e terceiro lugares ficaram, respectivamente, Luis Lacalle Pou e Pedro Bordaberry, ambos de partidos de centro-direita. Bordaberry já anunciou o seu apoio a Lacalle Pou para a segunda volta.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Eleições presidenciais no Brasil

Este domingo realiza-se a segunda volta das eleições presidenciais naquele que é simultaneamente o maior país da América do Sul e o maior país da Lusofonia- o Brasil. Dilma Rousseff, actual presidente (ou presidenta, como gosta de ser chamada), e Aécio Neves, disputam o cargo numa das eleições mais renhidas de sempre da democracia brasileira- o que resultou numa das mais violentas campanhas eleitorais de sempre no país.

 Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves- as três principais figuras destas eleições

Quem são os candidatos?

  • Dilma Rousseff- actual presidente, pertence ao Partido dos Trabalhadores (PT), e é apoiada por uma ampla coligação de partidos de esquerda (do centro-esquerda à extrema-esquerda). Foi a mulher que o anterior presidente brasileiro, Lula da Silva designou como sua sucessora há quatro anos. Polémica quanto baste, Dilma viu a sua popularidade muito afectada pelos protestos anti-corrupção em massa que afectaram o Brasil por altura da organização do mundial de futebol deste Verão. No entanto, é apoiada por uma imensa massa popular, principalmente da classe baixa e média-baixa, devido a políticas sociais como o Bolsa Família- programa que através de ajudas económicas do Governo tirou milhões de brasileiros da pobreza.
  • Aécio Neves- neto de Tancredo Neves, primeiro presidente democraticamente eleito do Brasil após a ditadura que durou até aos anos 80, é o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Esteve em risco de não passar à segunda volta, tendo conseguido superar a votação da candidata da coligação entre o Partido Socialista e os ecologistas, Marina Silva, que substituiu Eduardo Campos, anterior candidato que faleceu num misterioso acidente de aviação antes da primeira volta das eleições. Aécio conseguiu o apoio de Marina Silva, com quem fez um pacto eleitoral para a 2ª volta, e é apoiado pelos descontentes com a governação de Dilma Rousseff, e por uma importante parte dos brasileiros que começa a sentir os efeitos da crise económica que se está a iniciar no Brasil.

Que importância internacional têm estas eleições?

O Brasil é hoje um dos "pesos pesados" da economia e da política internacionais. Com cerca de 200 milhões de habitantes, é o 5º país mais populoso do Mundo e também o 5º maior em termos de território. O grande desenvolvimento económico que conheceu ao longo da última década leva a que seja englobado no grupo dos "BRIC" (Brasil, Índia, Rússia e China), que para muitos economistas reúne os 4 países que, devido ao crescimento do seu poder económico e político e às suas grandes dimensões, se estão a tornar as grandes potências mundiais, ameaçando a tradicional liderança global dos Estados Unidos, da União Europeia e do Japão.

Principais indicadores dos BRIC (infografia do China Daily)

Dentro da América Latina, o Brasil é um gigante, que acaba por influenciar todos os outros países. Tradicionalmente, os países latino-americanos são marcados pela instabilidade política, e durante muitos anos foram oscilando entre regimes pró-EUA (mais à direita) e anti-EUA (mais à esquerda). Na última década, no entanto, a maioria dos países sul-americanos virou à esquerda, com regimes que se opõem abertamente à influência norte-americana- casos da Argentina (presidências do casal Kirchner), Equador (Rafael Correa), Venezuela (Hugo Chávez e agora Nicolás Maduro), Bolívia (Evo Morales), entre outros.

Nesta predominância da esquerda na América Latina desempenharam um papel fundamental as presidências do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, que com Lula da Silva conquistou pela primeira vez a presidência do Brasil, tendo-a conservado nos últimos 12 anos.

Assim, as eleições do Brasil são determinantes para o futuro de toda esta região do globo: 
  • Se Dilma vencer, é de esperar que o Brasil continue com políticas económicas e com uma diplomacia mais à esquerda, mantendo a América Latina como uma zona quase totalmente dominada por ideologias políticas mais próximas do socialismo. Diplomaticamente, e para além dos seus parceiros sul-americanos de esquerda, Dilma está mais próxima de países como Cuba, a Rússia ou a China.
  • Se, pelo contrário, Aécio Neves for eleito, é possível que se venha a assistir ao início do declínio do domínio da esquerda na América Latina, que já se começa a avistar pela caótica crise em que mergulhou a Venezuela após a morte de Hugo Chávez no ano passado . Diplomaticamente, é de esperar que Aécio se volte a aproximar dos Estados Unidos e da União Europeia.
Do vencedor dependerão também as políticas que o Brasil utilizará para lidar com a crise económica que começa a atravessar depois de muitos anos de prosperidade:

  • Se Dilma vencer, é provável que continuem as políticas com forte predomínio social, com o objectivo de tirar mais brasileiros da pobreza e levá-los para a classe média que. Esta foi uma política de sucesso nos últimos anos- com o crescimento da classe média, milhões de pessoas que sairam da pobreza passaram a consumir mais, dando um grande impulso à economia brasileira.
  • Se Aécio vencer, é provável que opte por combater os abusos nas políticas sociais (a direita argumenta que muitos brasileiros se servem dos programas sociais para não trabalhar e viver à custa do Estado), e siga um caminho rumo a uma economia de mercado mais capitalista (privatizações, flexibilidade laboral, incentivos às empresas, etc.).

Como funciona o sistema eleitoral do Brasil?

O Brasil é uma república democrática presidencialista- ou seja, o Governo não é chefiado pelo primeiro-ministro (como acontece em Portugal), mas sim pelo Presidente da República (como nos Estados Unidos e em França, por exemplo). 

O Presidente da República é eleito de quatro em quatro anos e pode cumprir um máximo de dois mandatos (ou seja, oito anos). Assim, se Dilma Rousseff vencer, entrará no seu último mandato, governando no máximo até 2018. 

As eleições presidenciais realizam-se, tal como em Portugal, a duas voltas: na primeira, apresentam-se vários candidatos a votação, e se algum deles tiver mais de 50% dos votos é eleito Presidente nessa data. Se nenhum chegar aos 50%, realiza-se uma segunda volta (que será este domingo), em que só participam os dois candidatos mais votados na 1ª volta (neste caso, Aécio Neves e Dilma Rousseff), sendo que quem vencer é eleito Presidente.

Resta dizer que o voto no Brasil é obrigatório, ou seja, que teoricamente quem votar está sujeito a multas e outro tipo de sanções. Mesmo assim, na 1ª volta, mais de 19% dos eleitores não foi votar. No Brasil é ainda utilizado um sistema bastante inovador de voto electrónico, que permite saber rapidamente os resultados, o que é bastante útil num país com esta dimensão territorial e populacional.

Cabine electrónica de votação no Brasil

O que dizem as sondagens?

Na 1ª volta, Dilma Rousseff conseguiu vencer com 41,59% dos votos. Agora, busca entre os que votaram noutros candidatos os cerca de 8% dos votos que lhe faltam para ser reeleita. No entanto, o apoio de Marina Silva (que ultrapassou os 20%) a Aécio Neves pode retirar-lhe a vitória, se uma grande maioria dos votantes de Marina optar agora por Aécio. 

Resta ver se o voto em Marina Silva na 1ª volta foi maioritariamente um voto anti-Dilma, e se os eleitores (maioritariamente de centro-esquerda) que a escolheram estão tão desiludidos com Dilma que preferem um governo à direita do que um governo à esquerda chefiado pela actual "presidenta".

Resultados da 1ª volta (infografia do Público)

As sondagens realizadas nos últimos dias têm dado resultados muito renhidos. Nos primeiros dias após a 1ª volta, davam a vitória a Aécio Neves, sempre por uma margem curta. Depois, passaram a dar um empate técnico (ou seja, os dois candidatos registavam resultados tão próximos que estavam dentro da margem de erro da sondagem, sendo por isso esta inconclusiva). As últimas sondagens já revelam uma vantagem, embora curta, de Dilma Rousseff.

 Sondagens para a segunda volta: a verde, Dilma; a azul, Aécio. (infografia da RTP)

No domingo saberemos quem será o Presidente (ou Presidenta) do Brasil nos próximos quatro anos.


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Atentados do Estado Islâmico no Canadá

O Canadá, país pouco habituado a estar no topo da actualidade mundial, presenciou entre ontem e hoje inéditos atentados terroristas atribuídos a "jihadistas", provavelmente ligados ao «Estado Islâmico».

Tiroteio dentro do Parlamento do Canadá
  • Na segunda-feira, dois soldados do exército do Canadá foram atropelados em Montreal, na região do Quebec (costa atlântica do país), enquanto caminhavam perto de um centro comercial. Segundo a polícia e os seus vizinhos, o autor do atropelamento (que foi morto pelas autoridades), é um rapaz de 25 anos que se converteu ao islamismo radical há cerca de um ano. Um dos soldados acabou por falecer.
  • Hoje, quarta-feira, três tiroteios agitaram a cidade de Ottawa, capital do Canadá. No primeiro, um homem armado matou a tiro um soldado que guardava um memorial de guerra. O soldado acabou por morrer e o atirador foi abatido pela polícia. Apesar de se suspeitar que haja ligações do atirador ao Estado Islâmico, ainda não há certezas.
  • O segundo tiroteio ocorreu dentro do Parlamento do Canadá, quando vários homens armados entraram no edifício, disparando vários tiros. Um dos suspeitos foi morto pela polícia, mas o acontecimento colocou Ottawa em estado de sítio, com a polícia a fechar várias ruas da cidade e a aconselhar os residentes e os deputados a não sair de casa e a evitar vir à janela. Os telemóveis foram bloqueados na região e o Primeiro-Ministro foi afastado do local. Felizmente, não houve vítimas mortais.
  •  O terceiro tiroteio ocorreu num centro comercial a 300 metros do Parlamento, obrigando à sua evacuação. Nestes dois últimos tiroteios, registaram-se 3 feridos.

 Ruas cortadas em Ottawa devido aos atentados de hoje

 Estes atentados acontecem dias depois de o governo canadiano ter anunciado a participação da sua força aérea nos bombardeamentos a alvos do Estado Islâmico (EI) no Iraque, e podem ser uma represália dos islamitas radicais contra o envolvimento dos canadianos no conflito. São também os primeiros atentados realizados por este grupo num país ocidental. O EI já ameaçou vários países europeus e aliados dos Estados Unidos com atentados terroristas em série, e teme-se que este tipo de acções comece a tornar-se frequente também noutros países. O governo norte-americano fechou a sua embaixada no Canadá e elevou o estado de alerta do país.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Estado Islâmico: a grande ameaça global

Em poucos meses, o grupo terrorista «Estado Islâmico do Iraque e do Levante» (EI) passou de um simples desconhecido a uma das maiores ameaças à paz mundial.



Antecedentes

Embora não haja uma data exacta para a fundação deste grupo terrorista, calcula-se que tenha aparecido entre 2003 e 2004, ou seja, pouco depois da invasão do Iraque pelos Estados Unidos e pelos seus aliados da NATO, e num período em que se formaram vários grupos rebeldes que espalharam pelo Iraque uma onda de violência anti-americana, marcada por atentados terroristas (na sua maioria feitos por bombistas suicidas) que não mais tiveram fim até aos dias de hoje.

O Estado Islâmico tem a sua origem numa ala radical da Al-Qaeda e de outros grupos terroristas, e é  formado por guerrilheiros muçulmanos sunitas extremistas (os sunitas são o maior ramo do Islão, ao qual pertencem mais de 80% dos muçulmanos; o segundo ramo mais importante é o dos xiitas, com 16%) que acreditam que a Jihad (guerra santa) faz parte do seu dever espiritual de espalhar a sua fé pelos "infiéis".
Com o apertar da chamada "guerra ao terror" decretada pelo antigo presidente norte-americano George W. Bush e seguida por Barack Obama (que só ordenou a retirada das suas tropas do Iraque a partir de 2010), a Al-Qaeda foi tendo cada vez menos espaço de manobra, e a sua importância e eficácia foi-se reduzindo, principalmente a partir da captura e assassinato do seu líder histórico, o multimilionário saudita Osama Bin Laden, pelo exército americano em 2011.

Depois de alguns anos de relativa "calmaria" (não houve mais grandes atentados nos Estados Unidos nem na Europa), parecia que o maior perigo terrorista para o ocidente tinha sido eliminado. Pura ilusão. No Iraque e na Síria, o Estado Islâmico fazia recrutamentos em massa (não só na zona como até na Europa e nos Estados Unidos) e aumentava rapidamente o seu número de seguidores, que se tornavam ainda mais radicais que os militantes da Al Qaeda.

Como ganhou o Estado Islâmico tanto poder?

Entre 2010 e 2011, o mundo árabe passou por uma imensa mudança. Muitos dos países de maioria muçulmana, que eram governados por violentas ditaduras militares há décadas, foram palco de protestos pró-democracia com origem em movimentos espontaneamente organizados nas redes sociais e que se converteram em grandes manifestações com o apoio da maioria das populações. Apesar da brutal repressão dos regimes ditatoriais, em muitos destes casos as revoluções tiveram sucesso e os ditadores foram depostos: primeiro na Tunísia, com a deposição de Ben Ali; depois na Líbia (morte de Khadafi), Egipto (demissão de Hosni Mubarak), e no Iémen (abandono do presidente Saleh). Noutros países, como a Argélia, Marrocos, Bahrein, Líbano, Jordânia ou Kuwait, as revoltas são pacificadas com algumas cedências dos governos às reivindicações dos manifestantes. 

Apenas num país a situação não foi controlada. Na Síria, os protestos pela demissão do ditador Bashar Al-Assad foram violentamente reprimidos, mas os opositores não se deram por vencidos, o que levou a um confronto militar de grandes proporções- a Guerra Civil Síria- que decorre há mais de dois anos e provocou cerca de 200 mil mortos, mais de 6 milhões de desalojados e 3 milhões de refugiados.

Neste contexto, o Estado Islâmico (EI) entra na guerra, não só contra o exército do ditador Bashar Al-Assad, como também contra os rebeldes pró-democracia que são apoiados por países como os Estados Unidos e a Turquia. O EI (também conhecido pela sua sigla inglesa ISIL ou ISIS) rapidamente conseguiu conquistar vastas regiões no leste da Síria, junto à fronteira com o Iraque e a Turquia, num avanço muito violento e difícil de parar.

 
Bashar Al-Assad, presidente da Síria

Os grandes êxitos do EI na luta contra o regime sírio atraíram para o grupo cada vez mais militantes, financiamento e armas. Isto permitiu aos terroristas avançar noutra frente, realizando atentados e ataques militares um pouco por todo o Iraque, e conseguindo tomar o controlo de grande parte do país.

Situação actual

Perante um exército mal preparado, o seu sucesso no Iraque foi estrondoso. O Estado Islâmico controla, actualmente, quase metade do país, incluindo pontos estratégicos importantes como barragens, campos petrolíferos e refinarias (que lhes permitem vender petróleo e obter com isso elevados rendimentos que usam na compra de armas) e até algumas das cidades mais importantes do país, como Mossul (a segunda cidade do Iraque) e o boa parte da região autónoma do Curdistão iraquiano. 

A 29 de Junho de 2014, os terroristas anunciam oficialmente a criação de um califado islâmico  nos territórios ocupados da Síria e do Iraque, governado de forma autoritária por um califa (líder supremo) que tomou o nome de Abu Bakr Al-Baghdadi. Um califado é uma forma de organização muito utilizada no antigo islão cujo chefe de estado é um califa, e a lei aplicada é a Sharia- a lei islâmica.

 Abu Bakr Al-Baghdadi, autoproclamado califa do Estado Islâmico

Em cada território que ocupa, o Estado Islâmico começa gradualmente a aplicar uma versão radical da Sharia, criando tribunais próprios e desmantelando as instituições do Estado anteriormente existentes. Chegados a uma cidade, dão aos não-muçulmanos um prazo para se converterem ao Islão, que se não o fizerem correm o risco de ser executados, torturados ou escravizados. Espalham um regime de terror pelas cidades, executando sem piedade quem ousa desobedecer-lhes (os relatos de quem foge das cidades ocupadas falam em dezenas de decapitações, sendo as cabeças espalhadas pelos muros das casas para espalhar um clima de terror pelas pessoas). Outras marcas da ocupação são a bandeira negra que os jihadistas penduram no topo do edifício mais alto de cada cidade que conquistam, e uma campanha de propaganda feroz que inclui a distribuição de material informático com vídeos e cânticos de apoio à Jihad e contra a democracia e os "infiéis".

Os principais grupos atingidos pela violência têm sido as minorias cristãs, os muçulmanos xiitas, e os curdos (nomeadamente a minoria yazidi). Há relatos de violações, conversões e casamentos forçados, escravizações, recrutamento de crianças-soldado, e imposição de regras duras quanto aos costumes- as mulheres passam a ser proibidas de sair de casa excepto quando autorizadas pelo marido e têm de usar a burqa (véu de corpo inteiro); os roubos são punidos com a amputação (prática comum nalguns países muçulmanos), etc.

Refugiados curdos na Turquia observam os combates em Kobani, na Síria


A reacção internacional

Apanhada inicialmente de surpresa com o crescimento rapidíssimo do Estado Islâmico, os países ocidentais e também os da região demoraram a reagir. Os Estados Unidos, por exemplo, nunca tinham intervido directamente na Guerra Civil da Síria por causa da oposição e ameaças da Rússia, que apoia o regime de Bashar Al-Assad e tem revelado uma crescente hostilidade para com os americanos.

No entanto, com o Estado Islâmico às portas de Bagdade e a esmagar as forças opositoras, a comunidade internacional acabou por ter que intervir. Para além disso, o recrutamento de muitos milicianos estrangeiros (nomeadamente europeus- até alguns portugueses!-, americanos e árabes dos países vizinhos) que prometem regressar aos países de origem para continuar a "guerra santa" através de atentados terroristas em massa, provocou, principalmente nos governos do ocidente, o medo de uma crise de terrorismo nos seus próprios países.

 Jihadistas recrutados em países ocidentais

Outro factor decisivo para o avanço ocidental foi o horror provocado em vários países pelo tratamento dado aos reféns estrangeiros que os terroristas conseguem fazer- jornalistas e membros de organizações humanitárias têm vindo a ser assassinados por decapitações filmadas e cujas imagens têm corrido mundo.
Países como os Estados Unidos, a Austrália, vários membros da NATO (como o Reino Unido, a França, o Canadá, a Alemanha, a Itália, a Holanda ou a Espanha), formaram uma coligação inédita com países árabes como a Arábia Saudita, o Qatar, os Emirados Árabes Unidos, a Jordânia e o Bahrein, e estão, desde o início de Agosto, a efectuar bombardeamentos aéreos contra alvos estratégicos do Estado Islâmico, como bases militares, campos petrolíferos e refinarias. Outros países europeus- incluindo alguns de maioria islâmica como a Albânia ou a Bósnia-Herzegovina-, têm apoiado a ofensiva fornecendo material militar. O próprio Irão e a Rússia já se declararam adversários do Estado Islâmico. Nunca nenhum grupo ou estado tinha suscitado tanta oposição internacional como este.

No entanto, nenhum país se dispôs ainda a avançar por terra, com tropas suas, contra os terroristas. A Turquia, que tem o Estado Islâmico a controlar territórios que fazem fronteira com o país e com vários apoiantes dentro da própria Turquia, tem sido pressionada pela comunidade internacional a avançar, mas o poder político turco tem até agora resistido a avançar.

A guerra contra o Estado Islâmico continua, assim, feroz e sem perspectivas de terminar nos próximos tempos.